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Benilde, a criada.

por Nuno Félix, em 28.12.13

 Para quem um exercício crítico sobre a caridade raia a eresia, e a solidariedade não passa da "caridade da esquerda", para quem "os tribunais do trabalho são contra os empregadores", para quem o salário mínimo é uma limitação à liberdade de contratar, e a ter que existir, o seu valor é sempre um obstáculo à própria contratação e uma boa desculpa para os números do desemprego ou até para a anemia da iniciativa. Para quem é filho, pai, marido, amigo, de uma Ernestina qualquer e isso o compraz. Que saiba aqui que ser de esquerda é combater estas e outras injustiças, é combatê-los a eles, os exploradores, os que abusam da sua posição (social, económica, até intelectual) para subjugar outros seus iguais mas em quem eles mais não vêm que o seu "conteúdo funcional".

 

"Analfabeta, nunca casou e cuidou da patroa até ela morrer. Agora pede aos herdeiros que paguem tudo aquilo a que tinha direito e nunca recebeu

Benilde não o sabia, mas aos 17 anos entregou a sua vida a Ernestina. Quando deu por ela tinham passado cinco décadas, a patroa estava deitada na cama às portas da morte, ela noutra cama no mesmo quarto a acorrer aos seus ais, e sem ter ninguém. Benilde não se casou, não teve filhos. Nem tão-pouco se lhe conheceram namorados, saídas nocturnas ou matinés com as amigas. Durante 50 anos foi uma criada exemplar: limpava a casa, lavava e engomava a roupa, engraxava os sapatos, preparava e cozinhava as refeições, tratava do galinheiro, da horta e do jardim e, se preciso fosse, ainda acordava a meio da noite para cuidar da patroa. Não folgava, não gozava feriados - a não ser o dia de Natal - e mesmo quando ia à missa obrigava-se a regressar a correr porque o trabalho não esperava. No meio disto, nunca aprendeu a ler nem a escrever. Benilde, analfabeta, passou dois quartos de século a trabalhar, sete dias por semana. Em troca, nunca ganhou mais de 150 euros por mês." In Jornal I 27\12\12

 

Esta história começou em 1960, mas chegou aos nossos dias contemporânea do trabalho escravo que persiste em florescer num país em que um teto e pão cada vez mais preenchem a ambição de muitos portugueses. O texto da notícia choca pelo voluntarismo ingénuo de Benilde e pela crueza do distanciamento da patroa Ernestina com quem privou, num dado sentido, mais do que muitas pessoas em união de fato ou até em matrimónio. Feitas as contas, uma mulher passou ao lado da vida servindo a vida de outra para que esta a passasse melhor poupando-a a sequer um só dia solidão até ao fim duns bem cuidados 99 anos.

Por fim, na morte como na vida, a gratidão dos Senhores sobre os serviçais, uma espécie de mão-invísivel, de tal forma invísivel, que das poucas vezes que foi avistada pariu santos e mecenas, e que no caso concreto não mostrou mais do que a falangeta do mindinho. Ingrata pelos 50 anos de doce e fiel proto-escravatura a "criada" pediu aos herdeiros testamentados a possível reparação.

Último recurso dos fracos contra os fortes, a lei, que protege os primeiros e que os segundos dispensam, no "Tribunal de primeira instância condenou os herdeiros a pagar a Benilde 18 659 euros, fora juros de mora, devido ao salário não actualizado e aos subsídios que ficaram por pagar. Mas Benilde recorreu, inconformada por aquele tribunal ter concluído que "trabalhava sete dias por semana, folgando por vezes ao domingo", e invocando que a ser descontado do salário mínimo mensal valores de alimentação e alojamento - que não pagava - esse valor nunca poderia ser superior a 47% do ordenado mínimo.

Chamado a decidir, o Tribunal da Relação do Porto concluiu que Benilde gostava da patroa como de uma mãe e se mais vezes não folgou ao domingo foi porque não quis. "Seguramente algumas vezes não foi preciso fazer o almoço de domingo, nem voltar para fazer o jantar, e algumas vezes a recorrente gozou a sua folga, fora de casa, ainda que sempre voltasse para dormir, e que a gozou sem sair da casa, que era também a sua", diz o acórdão, que não foi em tudo desfavorável a Benilde.

Concordando que alimentação e alojamento não podem representar mais de 47% do ordenado, os juízes desembargadores mandaram calcular quanto custaria um quarto naquela região e alimentação completa, ano após ano, desde 1992. O juiz vai ter de voltar a ouvir a história de Benilde."

E que país míseravel é este em que uma farda, um quarto refundido, e as sobras da refeição da patroa pode contabililizar mais do que 47% da remuneração devida?!

 

O que diz o acórdão do Tribunal da Relação do Porto

“Pelo menos desde 1960, por acordo efectuado verbalmente, a B. trabalhava para E. como empregada doméstica. As funções de B. consistiam em confeccionar refeições, fazer a lavagem e tratamento de roupas, serviços de jardinagem, cultivo da horta e execução de outras tarefas relacionadas com estas. Nos últimos anos, a sua função era de vigilância e assistência a E., mantendo as funções relacionadas com a casa de habitação. A B. vivia em casa de E., que lhe fornecia alimentação e alojamento. A B. nunca gozou férias enquanto trabalhou para a E. A B. trabalhava sete dias por semana, folgando por vezes ao Domingo. A B. vivia em casa da E., estando sempre disponível para as necessidades desta, tratando-a como se fosse sua mãe. A B. nunca gozou qualquer feriado obrigatório com excepção do dia 25/12. A B. nunca auferiu subsídio de natal ou subsídio de férias. Durante os vários anos que trabalhou para a referida E., nunca a B. reclamou quanto ao salário pago, horas de trabalho, falta de gozo de dias de descanso ou falta de pagamento do que quer que fosse.”

“E. era uma pessoa doutros tempos, antiga, cuja perspectiva sobre a relevância da criada era a da sua redução a uma trabalhadora permanente, sem qualquer interesse próprio. [...] É um facto notório e absolutamente incontestável que esta foi a perspectiva de muitas pessoas antigas, obviamente não de todas e variando de meio rural para urbano e de meio urbano para meio urbano concretamente considerado. E é também absolutamente comum que muitas destas empregadas se afeiçoaram – à míngua da possibilidade de tempo e dinheiro para desenvolverem outros interesses – aos seus patrões, aos quais dedicaram toda a vida, e em cujas famílias praticamente se integraram.”

“Reafirmamos que para uma empregada doméstica alojada, o facto de estar em casa não significa estar a trabalhar, podendo estar também a descansar, seja no seu próprio quarto ou alojamento, seja no resto da casa, ou no quintal, e o tempo de receber visitas próprias nessa casa, sem estar a trabalhar, é tempo de descanso.”

“E conjugando os depoimentos, de F., G. e H., temos de aceitar que a recorrente ia algumas vezes visitar a família, e apreciados os mesmos à luz das regras de experiência normal, temos de considerar que os depoimentos se referem a uma realidade genérica, mas não concretizam domingo a domingo de 50 anos, o que seria absolutamente impossível. E temos de considerar que seguramente algumas vezes não foi preciso fazer o almoço de domingo, nem voltar para fazer o jantar, e algumas vezes a recorrente gozou a sua folga, fora de casa, ainda que sempre voltasse para dormir, e que a gozou sem sair da casa, que era também a sua.”

“Ora, no âmbito do seu contrato, a B. tinha alojamento e alimentação e por isso o custo respectivo não teve de ser por ela especificamente pago em contado. A Autora beneficiou desse alojamento e alimentação. É verdade que no caso em que o trabalhador tem um alojamento próprio, o alojamento em regime de internato no domicílio patronal se afigura mais benéfico ao empregador do que ao trabalhador. [...] Em suma, não é defensável que o alojamento não possa ser considerado retribuição por ser estabelecido em favor do empregador.”

“Sendo a disciplina regulada de modo idêntico ao longo dos diversos diplomas, neste ponto concreto do recurso assiste inteira razão à recorrente. Na matéria de facto provada apenas se apurou alojamento e alimentação – de resto, sem mais qualquer pormenorização – e não se apurou – o que também era discutido – se a recorrente igualmente beneficiava de vestuário fornecido pela empregadora. Não se tendo apurado qualquer outra prestação em espécie além do alojamento e alimentação, o valor percentual (35% para a alimentação e 12% para o alojamento) montava a 47%, percentagem que era o máximo que podia ter sido considerado. Haverá assim que, relativamente a todos os cálculos aplicar um aumento de 3%.”

“Nestes termos, e nos do artigo 662.o n.o 2 al. c) parte final do CPC (na versão da Lei 41/2013 de 26.6) anula-se oficiosamente a decisão da matéria de facto, ordenando-se a ampliação da matéria de facto para se apurar se o alojamento da recorrente era um quarto na casa da empregadora e para apurar o valor corrente na região dum quarto e da alimentação completa, ano a ano, em todos os anos reclamados pela recorrente, desde 1992, se necessário com um convite às partes para alegarem factos pertinentes.”

 

Esta é apenas uma história triste, mais uma da nossa triste história, que escolhi para meu primeiro texto aqui no Filibuster, para ilustrar e justificar as 3 razões que me levaram a aceitar escrever aqui. Ser de esquerda, ser português, ser humano.

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publicado às 18:50

E por falar em retrocessos conservadores...

por Pedro Delgado Alves, em 27.12.13

O Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), liderado por António Guterres, veio criticar a proposta de legislação britânica em matéria de asilo e refugiados apontando para um risco sério de estigmatização, de discriminação de base racial e de privação de acesso a serviços públicos essenciais e a apoio social mínimo. 

 

A reação dos backbenchers conservadores destacados para o ataque não se fez esperar e foram-se à jugular do Alto-Comissário, um burocrata não eleito com um perigosissímo passado como primeiro-ministro socialista, do qual nenhum Governo preocupado com as suas fronteiras deve ouvir lições. Uma linha ad hominem miseravelzinha, que esqucece oportunamente as conclusões de uma investigação autónoma das Nações Unidas sobre acesso à habitação, que vai no mesmo sentido, bem como o histórico do ACNUR em relação ao Reino Unido (que já no passado criticou propostas de legislação de Governos trabalhistas) e a outros países, que levaram críticas afinadas pelo mesmo diapasão (veja-se o caso da Suíça ou da Bulgária).

 

Interessante seria pedir a opinião do parceiro de coligação dos Conservadores, os Liberais Democratas, tendo em conta o seu corretíssimo histórico nesta matéria e onde se encontram vozes muito pouco satisfeitas com esta deriva (que, em abono da verdade se diga, já vem do tempo dos Governos do Labour).

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publicado às 22:25

Regresso ao passado

por Pedro Delgado Alves, em 27.12.13

O eixo mais reacionário do Governo espanhol tomou a dianteira e avançou, muito para lá das piores expectativas, com uma revisão do regime juridico aplicável ao aborto. A lei proposta pelo Ministro Gallardón é de tal forma radical, recuando para lá do quadro em vigor desde 1985 (muito para lá da mera revogação da lei aprovada no Governo Zapatero, conforme referido na campanha eleitoral), que setores mais moderados do PP começam a pedir moderação e bom senso. A entrar em vigor, a nova lei determinaria que cerca de 89% dos casos em que a IVG é hoje permitida em Espanha voltariam a ser punidos, empurrando quase uma centena de milhar de mulheres para o estrangeiro ou, como é infelizmente provável no quadro económico atual, para redes clandestinas e inseguras. 

 

Num momento em que a pressão económica é intensa, em que os níveis de confiança nas instituições é o mais baixo de sempre (incluindo os partidos e a própria instituição monárquica) e em que a tensão em torno dos processos soberanistas, em particular na Catalunha, ameaçam colocar em causa os equilíbrios fundadores da democracia espanhola, encetar um processo destes é de uma irresponsabilidade incendiára. Seguramente, a liderança do PP acha que vai galvanizar as bases e reforçar a coesão interna, apelando aos setores mais radicalmente conservadores. Na realidade, reabre um debate há muito encerrado e optar por uma linha a que a maioria da população está longe de aderir, instrumentalizando a saúde sexual e reprodutivas das mulheres espanholas e abdicando de um regime que tem demonstrado dar resposta adequada a uma questão complexa de direitos e saúde pública. 

 

Apesar de ter as maiores dúvidas da capacidade dos setores nacionais que comungam da mesma leitura dos autores da proposta de legislação espanhola de desencadearem uma inicativa similar (as petições que a Assembleia da República tem periodicamente analisado pecam pela fraqueza dos dados apresentados e pela manipulação descredibilizadora dos factos), os acontecimentos em Espanha são reveladores da necessidade de não dar nunca por adquiridas as mais relevantes conquistas civilizacionais, importando sempre continuar a informar e passar a mensagem, prevenindo os recuos e reforçando a consciência coletiva do que está em jogo. 

 

O debate em Espanha é tão nosso como dos nossos vizinhos. 

 

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publicado às 17:32

Sem levantar vôo

por Pedro Delgado Alves, em 27.12.13

 

Ficou-se hoje a saber, a partir de notícia do JN, que o Governo deixou cair o processo de reativação da ligação aérea para Trás-os-Montes. A linha foi descontinuada no final de 2012, e estava em curso a negociação do novo modelo de apoio às viagens (que passaria a assentar em apoios aos passageiros, ao invés de apoio ao prestador do serviço, à semelhança de modelos em vigor noutras rotas). Curiosamente, o processo foi abandonado no dia 30 de setembro, um dia depois das autárquicas deste ano. Eleições essas em que o PSD perdeu a Câmara de Vila Real para o PS, pela primeira vez na história de democracia.

 

No pior dos cenários, estamos perante algo similar ao modelo jardinista de fazer cobranças coercivas de contas da eletricidade apenas aos municípios em que o PSD perdeu as eleições para a oposição. No melhor dos cenários, foi apenas eleitoralismo, descontinuado mal se deixou de justificar fazer de conta que se queria reativar aquela ligação aérea. Em qualquer caso, é sempre mau..

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publicado às 16:20

O BOM EXEMPLO

por David Areias, em 19.12.13

Os professores portugueses foram ontem sujeitos a (mais uma) humilhação. Muitos reagiram a esse acto, demonstrando não se vergar perante o poder que lhes impõe um exame de acesso ao desemprego e uma desqualificação da sua formação e das escolas onde estudaram. Foi um bom exemplo.

Mau exemplo o dos governantes que se indignam perante a reacção dos professores, como se a humilhação do cidadão fosse o normal e o aceitável. Como se o bom exemplo de ontem ainda não fosse suficientemente bom. Continue-se, pois, a exemplificar bem.

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publicado às 20:23

LEITURAS

por David Areias, em 11.12.13

Mark Blyth
Austerity: the history of a dangerous idea
Oxford University Press, 2013

"John Quiggin usefully terms economic ideas that will not die despite huge inconsistencies and massive empirical failures as 'zombie economics'. Austerity is a zombie economic idea because it has been disproven time and time again, but it just keeps coming. Partly because the commonsense notion that 'more debt doesn't cure debt' remains seductive in its simplicity, and partly because it enables conservatives to try (once again) to run the detested welfare state out of town, it never seems to die. In sum, austerity is a dangerous idea for three reasons: it doesn't work in practice, it relies on the poor paying for the mistakes of the rich, and it rests upon the absence of a rather large fallacy of composition that is all too present in the modern world."

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publicado às 23:35

NADIR AFONSO

por David Areias, em 11.12.13

Faleceu hoje, aos 93 anos de idade, o pintor Nadir Afonso. Guardamos a singularidade da sua obra artística e a memória de um homem que sempre foi flaviense e transmontano. Que sempre falou como flaviense e transmontano. Um dos meus.

"Eu sou pintor e também qualquer coisa como atrasado mental; quando paro de trabalhar só me dá para vaguear pelos campos!"

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publicado às 23:17

Parabéns!

por Pedro Delgado Alves, em 07.12.13

 

Mário Soares, no dia em que fez 89 anos, deslocou-se a Viana do Castelo para uma ação de defesa dos Estaleiros Navais. Imparável.

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publicado às 21:00

46664

por Pedro Delgado Alves, em 06.12.13

Não há nada a escrever ou dizer que já não tenha sido ou que vá ser novamente dito, ou que não saibamos instintivamente a partir do legado de Nelson Mandela. Parafrasearia apenas o que ouvi há instantes na TSF pela voz do José Luís Peixoto: fomos privilegiados por ter vivido ao mesmo tempo e testemunhado a vida de Mandela. 

 

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publicado às 00:15

Maus-tratos contra animais: algumas notas e esclarecimentos

por Pedro Delgado Alves, em 05.12.13

O i de hoje dá destaque ao projeto do qual fui subscritor e que apresentámos para acompanhar uma petição que é discutida na 6.ª feira sobre maus tratos a animais. Tendo em conta a provável e relativamente inevitável onda especulativa e desinformativa exagerada que diplomas em matéria de animais normalmente convoca, parece-me de alguma utilidade esclarecer dúvidas que possam subsistir ou aparecer (desde já sugerindo a leitura da iniciativa aqui)

 

Apesar de providenciar manchetes atrativas, bem vistas as coisas, trata-se de um regime moderadíssimo, bem menos exigente e abrangente do que a associação promotora da petição requer ao Parlamento, limitando-se a concretizar o que falta na legislação da década de 90. 

 

Assim sendo, destacaria os seguintes traços do que está em causa: 

 

a) Em primeiro lugar, o projeto visa apenas animais de companhia (na linha de recomendações várias quanto à estabilidade do conceito e à existência de um quadro consensual em torno do regime próprio destes animais). Não há, pois, espaço para especulações sobre se o projeto vai do urso à formiga: está bem definido na lei ao que se aplica:


b) Por outro lado, o projeto não altera a legislação portuguesa no que se refere à definição dos atos que são lícitos e ilícitos (i.e. a tourada, a caça, o abate de animais realizado nos termos da lei por razões alimentares ou sanitárias, o regime de cães perigosos, a legislação sobre agropecuária e criação mantêm-se todos em vigor nos mesmíssimos termos de sempre.

 

c) De facto, apenas se passa a prever sanções para condutas que desde 1995 já são expressamente proibidas pela lei e que apenas não têm regime sancionatório associado (que foi remetido para posterior desenvolvimento, que nunca se chegou a produzir). 

 

d) A moldura penal máxima prevista no projeto para os casos de maus tratos que levem à morte do animal não excede a moldura que hoje já se aplica ao crime de dano (que é precisamente aquele que já enquadra, insuficientemente, a possibilidade de maus tratos ou morte de um animal). E esse é apenas o limite máximo para os casos mais graves, prevendo-se depois um quadro de contraordenações e sanções penais menos graves. Repare-se, ainda, que mesmo no que respeita às sanções penais, estamos no âmbito das molduras penais que permite a suspensão do processo e o recurso a sanções alternativas. E em todos os casos prevê-se a possibilidade de pena de multa como alternativa à pena de prisão.

 

Naturalmente, serão formuladas as objeções tradicionais relativas à prioridade desta matéria no momento de crise que atravessamos. Quando a essa linha argumentativa apenas há a dizer que a Assembleia da República não perdeu a sua soberania para alterar e melhorar a ordem jurídica quando necessário, devendo ser sensível às preocupações que os cidadãos (de forma bem expressiva) lhe trazem por via das petições. O debate de vinte minutos na próxima 6.ª feira dificilmente travará a saída da crise ou agravará o estado das contas públicas. Pode, no entanto, tornar a sociedade mais equilibrada nos valores que sustenta.

 

Para além disso, trata-se de um tema que temos vindo a acompanhar desde que as primeiras petições foram entregues, que já foi anunciado em anteriores momentos (em plenário e em comissão) perante a realidade que hoje temos e que é marcada por um quadro jurídico incompleto em matéria sancionatória. Simultaneamente, desde há vários meses que temos vindo a reunir com todos os interessados e com os profissionais técnicos dos setores relevantes, sempre procurando soluções equilibradas.

 

Penso que esta solução é mais do que razoável e que peca por tardia. 

Espero que a maioria do Deputados concorde com esta leitura na próxima 6.ª feira. 

 

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publicado às 01:36

Se não fosse a realidade isto até corria bem

por Pedro Delgado Alves, em 04.12.13

 

Os últimos dias não têm sido famosos para Nuno Crato, demonstrando que não basta agrupar lugares-comuns revivalistas sobre o sistema educativo e embrulhá-los num discurso libertador das anatemizadas Ciências da Educação, repetindo o mantra rigor até à exaustão do interlocutor. 

 

Depois de ter feito perder a cabeça aos reitores, encostados mais uma vez às cordas por um orçamento feito todinho no Terreiro do Paço perante a passividade de um titular da pasta da Educação que não consegue fazer prevalecer a ideia de que há alguma utilidade económica em não arruinar o sistema de ensino superior, seguiu-se a resistência intensa à prova de acesso para docentes contratados, que apenas algum bom-senso parcial de última hora permitiu travar na sua escala mais absurda, que apontava para a sujeição de docentes com anos de experiência e várias vezes avaliados a uma prova injustificada mesmo para quem pretende aceder à carreira. 

 

Agora, novamente através de um relatório PISA, da OCDE, surge a demonstração de que a narrativa com a qual o Ministério da Educação e Ciência contava não adere minimamente à realidade. Apesar de continuar abaixo da média dos países da organização, Portugal continuou a progredir em leitura e matemática na sequência das reformas desenvolvidas na última década, revelando um sistema educativo em melhoria, algo que mereceu um reparo elogioso no relatório. Simultaneamente, a Suécia, um dos modelos apregoados pela atual maioria como fonte de inspiração para as reformas "libertadoras" do sistema, privilegiando a liberdade de escolha e a inevitável transferência de recursos da escola pública para o setor privado, volta a piorar a sua posição realtiva nas avaliações mais relevantes. 

 

Em suma, com argumentos sólidos como estes, que já ninguém consegue apresentar como mera propaganda manipulada pelo spin governativo de José Sócrates, ainda se consiga ir a tempo de travar a única implosão a que Nuno Crato efetivamente se dedicou: a da qualidade do ensino. Ou isso, ou preparemo-nos para que as próximas gerações, com grande exigência e rigor, como no antigamente, passem a decorar as estações de serviço das auto-estradas ou as estações de metro de Lisboa e Porto (uma vez que o sistema ferroviário, em desmantelamento como se encontra, já não se serve para alimentar exercícios de memorização como dantes). 

 

 

PS: Mais detalhadamente sobre o relatório, o claríssimo texto do Hugo Mendes, no local habitual

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publicado às 09:25

Também sou um mau socialista

por Pedro Delgado Alves, em 04.12.13

 

Texto formidável de Manuel Alegre. 

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publicado às 01:13

Sequestrados

por Pedro Delgado Alves, em 03.12.13

 

Muito se tem escrito sobe a intervenção do Secretário de Estado dos Assuntos Europeus em Atenas (que lhe valeu localmente o epíteto de "alemão") e sobre a total ausência de solidariedade e de capacidade e/ou vontade que manifestou na construção de uma opção política alternativa a partir das periferias atingidas pela crise. Entretanto, parece que até se vangloriou pelo twitter de ser a nova bête noire da esquerda grega, distanciando-se renovadamente de qualquer associação a essa perigosa gente helénica.

 

O episódio assinala com redobrada clareza a forma como o atual Governo adere ideológica e politicamente à lógica da Troika. Se outra finalidade não serve, permite pelo menos reforçar a resposta que o PM merece da próxima vez que perguntar de forma sonsa num debate quinzenal por uma alternativa num quadro de uma Europa irredutível: hipóteses para tentar não faltam, particularmente no plano da concertação de esforços à escala europeia, o Governo é que não as quer e nunca as quis. Já nada sobra do escasso pudor que tinha em escondê-lo.

 

Bruno Maçães pode bem estar convicto de que o rumo de austeridade que seguimos é o indicado para a refundação virtuosa do Estado Português, que os desempregados e os pensionistas com pensões de ainda maior miséria sejam meros acidentes de percurso, e que, ulrichianamente, tenhamos de aguentar, aguentar. 

 

Não pode é ficar à espera de que os demais Portugueses (e os Gregos e as outras vítimas da locura austeritária) se submetam com alegria e felicidade incontidas à narrativa que lhes hipoteca o futuro, aceitando e admirando os termos em que são sequestrados por uma Europa sem visão, aplaudindo a sua adesão às teses mais diabólicas e contraproducentes que têm sido testadas (sem sucesso) nestas cobaias periféricas. 

 

Mais do que procurar aplicar a fórmula de Berlim, a da austeridade, o nosso Secretário de Estado dos Assuntos Europeus desejaria provavelmente que os Portugueses se rendessem a uma fórmula de Estocolo, a do síndroma...

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publicado às 00:01

90 anos

por Pedro Delgado Alves, em 02.12.13


Maria Callas (1923-1977)

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publicado às 15:43

Democracia e protesto - algumas ideias (I)

por Pedro Delgado Alves, em 02.12.13

 

Que a crise iria criar um aumento da contestação social e um agravamento da dureza das manifestações de descontentamento é algo do qual todos já há bastante tempo tínhamos consciência. Apesar de a violência política não ser, felizmente, uma realidade frequente entre nós e de continuar arredada dos acontecimentos recentes, já em contexto de austeridade reforçada (com exceção única para a manifestação frente ao parlamento, no ano passado, que terminou com carga policial depois de horas de lançamento de objetos e pedras à polícia), o aumento da tensão é evidente. O nervosismo de quem vê apelos à violência onde apenas se procura sublinhar esse risco é precisamente um indício dessa mesma noção do risco.

 

Neste sentido, veja-se o aumento significativo da frequência com que as sessões da Assembleia da República são interrompidas por cidadãos que se encontram nas galerias, a transformação do espaço junto às escadarias do parlamento no palco por excelência e frequente da contestação e do culminar das manifestações de rejeição das medidas do Governo, as ocupações de ministérios na sequência da aprovação do OE para 2014 (numa ação muito pouco institucional face ao que tradicionalmente a CGTP opta por perfilhar como meio de luta) ou os episódios junto aos CTT de Cabo Ruivo, na passada sexta-feira.

 

Perante este cenário, o debate em torno do quadro jurídico que temos para enquadrar o protesto tem vindo a ser colocado em cima da mesa por alguns agentes políticos, que se interrogam sobre a necessidade de o alterar e de agravar as medidas de prevenção ou repressão dos protestos que, em seu entender, possam ser vistos como excessivos. Nesta linha, e ainda esta semana, voltou a estar em cima da mesa a questão do acesso às galerias do público da Assembleia da República, algo que, no rescaldo do episódio da "tomada" da escadaria pelos manifestantes das forças de segurança perante a passividade dos colegas que asseguravam a segurança da manifestação, pode encaminhar eventuais decisões pelo caminho errado, marcadas excessivamente pelo calor do momento. 

 

Parece-me, no entanto, que o quadro jurídico que hoje temos no que concerne a manifestações (e à presença de público no interior do parlamento, já agora) é equilibrado e capaz de dar respostas às necessidades de exteriorização do disenso e da opinião diversa (ou concordante) com as opções fundamentais dos Governos.

 

Apesar do caráter desatualizado de muitas das normas constantes do diploma que regula a matéria - um dos primeiros diplomas aprovados depois da Revolução de Abril (o Decreto-Lei n.º 406/74, de 29 de agosto) - a conformidade da sua letra com uma leitura plena da Constituição tem sido assegurada através de uma interpretação conforme dos aplicadores adminsitrativos e jurisdicionais ao longo das últimas décadas. Dificilmente os episódios descritos depõem no sentido de uma revisão a quente, que esqueça o sólido enquadramento doutrinal e jurisprudencial (solidificado com intervenções orientadoras e claras do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos). E se é certo que algumas zonas de incerteza vão aparecendo e que se prendem com evoluções inovadoras na forma de mobilizar os cidadãos ou com alterações de modelo tradicional das manifestaçõs (as mobilizações via rede sociais, ou a recente proposta da CGTP de atravessar a ponte 25 de abril), estão longe de justificar uma revisão global, num momento em que o debate dificilmente se faria de forma serena e ponderada. É, pois, importante não enveredar por alterações estruturantes à lei num momento em que podem ser lidas como condicionamento restritivo dos direitos em causa, pondo em causa o tal consenso pacífico de vários anos da sua aplicação. 

 

Por seu turno, em sede de presença nas galerias de público (o assunto que é mais provável que venha a ser discutido em breve), o acesso é feito de forma livre pelos cidadãos que se apresentem e identifiquem junto dos serviços da Assembleia, sendo informados de que não podem interferir nos trabalhos. A sanção para o incumprimento deste dever encontra-se prevista há anos no Código Penal, cujo artigo 334.º (peerturbação do funcionamento de órgão constitucional) determina que quem, com tumultos, desordens ou vozearias, perturbar ilegitimamente o funcionamento de órgão de soberania é punido com pena de prisão até 3 anosApesar desta clareza, a opção dos órgãos responsáveis pela gestão da vida parlamentar (e de outras entidades com competência para agir) há vários anos que tem sido a de não desencadear procedimentos criminais contra quem interrompe o plenário com protestos.


Este tem sido um exercício de bom senso, sensível ao que muitas vezes impele os cidadãos a protestar, e que apesar de poder reduzir a função preventiva da norma, tem permitido gerir um contexto de agravamento do desespero de muitas pessoas que sentem a necessidade de exigir ali, quando tudo falha, quando ninguém ouve, o direito a uma vida decente, a uma vida digna, a não ser tratado como um número numa folha excel de uma qualquer figura de segunda linha da Troika.

 

Significa isto que, perante esta praxe, não há espaço para reflexão e que o Parlamento não deve poder assegurar a compatibilização das reuniões com a presença fundamental de cidadãos nas galerias? Parece-me que, pelo menos, a ponderação da simples exclusão futura, por um período de tempo razoável, de quem não respeitou as regras de acesso às galerias se afigura mais do que suficiente e adequada para dar um sinal do equilíbrio que tem de se manter entre o direito de acesso ao parlamento, a liberdade de expressão e a necessidade de as reuniões do órgão de soberania decorrerem de forma não tumultuosa. 

 

Como poderemos discutir, num regresso prometido ao tema para breve, a opção em curso em Espanha é precisamente a inversa e tem todos os ingredientes para correr mal e revelar-se contraproducente. 

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publicado às 15:33

Mais sobre a reforma do Filibuster

por Pedro Delgado Alves, em 01.12.13

E aqui vão, como curiosidade para acompanhar o nome de batismo deste cantinho de internet, alguns artigos sobre a reforma da figura do filibuster no Senado dos Estados Unidos, em ambos os sentidos do debate: 

 

The Way to a More Responsive Congress

These ‘Reforms’ Are a Huge Mistake

Maybe Now We’ll See Some Action

Don’t Expect Much to Change

How Democrats Learned to Stop Worrying and Love the Bomb

The Old Senate Was Already Dead

 

E ainda: A filibuster FAQ

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publicado às 03:50





Filibuster, subs.

1. Utilização de tácticas de obstrução, tais como o uso prolongado da palavra, por membros de uma assembleia legislativa de forma a impedir a adopção de medidas ou a forçar uma decisão, através de meios que não violam tecnicamente os procedimentos devidos;

Filibuster, noun
1. The use of obstructive tactics, such as prolonged speaking, by a member of a legislative assembly to prevent the adoption of measure or to force a decision, in a way that does not technically contravene the required procedures;

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