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O Governo criou uma narrativa que genericamente está correcta. Reconhece a existência de um problema, reconhece a existência de direitos conflituantes e da necessidade de se proceder a um reequilíbrio na relação entre senhorios e inquilinos, propõe uma indemnização para os inquilinos que não conseguirem chegar a acordo com o senhorio quanto a um valor futuro de renda e identifica os grupos que carecem de uma tutela reforçada - As famílias mais carenciadas, os portadores de deficiência, e os mais idosos.
Sucede que inexiste qualquer correspondência entre o discurso e a letra da lei. Esta lei encerra um conjunto de aparências, equívocos, alçapões, moscambilhas ou de, resumindo numa palavra que o Governo conhece, malabarices.
Senão vejamos:
1.ª malabarice - Procurar critérios distintos dos previstos na restante legislação de forma a elidir os mecanismos de protecção constantes na lei.
Desde logo, o Governo, ao arrepio do que sucede noutras matérias, optou por proteger os arrendatários com deficiência com grau superior a 60%. A título de exemplo, em sede de I.R.S. essa protecção é conferida a quem possua um grau de deficiência igual ou superior a 60%.
Estando em questão aspectos dificilmente mensuráveis, não se percebe esta falta de vontade em harmonizar os regimes senão por uma sofreguidão irresponsável de restringir para lá do entendível o universo dos beneficários dos mecanismos de protecção previstos.
2.ª malabarice - O critério utilizado varia consoante se trate de proteger o inquilino ou o senhorio.
Ora, para efeitos de protecção em função da idade ou do grau de de incapacidade, a lei vai sempre buscar o arrendatário. Contudo, para efeitos de protecção em função dos rendimentos a lei segue os rendimentos auferidos pelo agregado familiar.
Mais uma vez aqui fica expressa a vontade do Governo em restringir o acesso a qualquer mecanismo de apoio na lei contemplado.
Esta opção legislativa gera situações profundamente injustas no plano material. O que o Governo nos transmite com esta solução é que um arrendatário de 65 anos que seja solteiro e viva sozinho fica protegido. Mas um arrendatário com 64 anos, casado, com um conjuge de 70 anos, com um ascendente e dois descendentes a cargo, já não é merecedor de qualquer tipo de protecção especial.
3.ª malabarice - Criar um regime regra, no que respeita as indemnizações, de aplicação inexistente.
O Governo, durante todo este tempo, tem-nos vendido a ideia de uma indemnização ao inquilino sempre que as negociações se frustrem.
É mentira! Não há qualquer indemnização!
O que existe é uma opção conferida ao senhorio entre indemnizar ou fixar administrativamente a renda em 1/15 do Valor Patrimonial Tributário (VPT).
Vou repetir, aquilo que a lei confere é a possibilidade de o senhorio escolher entre pagar uma indemnização ao inquilino ou receber anualmente 6,67% do valor do imóvel.
Mas alguém tem dúvidas de qual a opção entre levar uma paulada ou receber um prémio?
4.ª malabarice - O Governo achou por bem, num quadro de direitos conflituantes, e quando chamado a dirimir o conflito através de uma actualização administrativa do valor da renda, fixá-la em 1/15 do VPT.
1/15 do VPT, como referi, corresponde a um rendimento anual de 6,67%.
Para se ter uma ideia da obscenidade deste valor, o que o Governo propõe é que o inquilino pague em menos de 15 anos o valor total do imóvel, quando uma casa se compra a 30/40 anos recorrendo a um mútuo bancário.
Numa outra perspectiva, se se tratasse de um produto financeiro, o que o Governo estabelece como valor "justo" de rendimento são 6,67% por ano, sem risco.
Estabelecer um valor de renda nestes termos, sem nunca justificar como lá chegou, é um disparate sem nome.
O que nos leva à 5.ª malabarice - A protecção conferida aos arrendatários com mais de 65 anos ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60% é um logro.
Ela na realidade não existe, o que existe é uma remissão para o regime dos agregados carenciados, desde que essa carência também se verifique.
Por outras palavras, o valor actualizado da renda de alguém com 30 ou com 65 anos é o mesmo. É o da fixação administrativa!
A narrativa do Governo, que até enganou os jornais, como é exemplo a notícia infra, de que os "idosos escapam ao despejo" não é verdadeira.
Por uma razão simples, eles não vão conseguir pagar 1/15 do VPT. Serão forçados a abandonar o locado, por sua iniciativa, e sem indemnização.
6.ª malabarice - O diploma trata todos os inquilinos de forma cega e como se fossem uma espécie de servos da gleba, ligados à terra, mas sem quaisquer direitos sobre ela, senão o de pagar. Certo, é-lhes conferida uma alternativa, também podem ir embora.
A lei das rendas, perdão...dos despejos, trata da mesma forma o inquilino diligente que ao longo dos anos foi fazendo obras no locado, incluíndo as com autorização do senhorio, a suas expensas, e por lhe ter sido reconhecido o direito de ali ficar durante o seu período de vida, como trata o inquilino que nunca procedeu a qualquer benfeitoria no locado.
Entretanto a lei muda, e o Governo, diligente a criar um Balcão Nacional do Arrendamento, perdão...do Despejo, para se certificar que as pessoas são rapidamente postas para fora, não atribui competência a esse Balcão no que toca as benfeitorias devidas.
Nem sequer submete como condição, para o inquilino deixar o locado, que o pagamento dessas benfeitorias lhe seja efectuado.
Para uns agilidade de processos e celeridade total na obtenção de título executivo...para os outros o estrito cumprimento da lei e a consequente morosidade que acompanha o processo declarativo ordinário.
P.S: malabarice - conceito de que "Ele [Passos Coelho] é o padrasto, o conceito certamente é filho de malabarismo e aldrabice."
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