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Democracia e protesto - algumas ideias (I)

por Pedro Delgado Alves, em 02.12.13

 

Que a crise iria criar um aumento da contestação social e um agravamento da dureza das manifestações de descontentamento é algo do qual todos já há bastante tempo tínhamos consciência. Apesar de a violência política não ser, felizmente, uma realidade frequente entre nós e de continuar arredada dos acontecimentos recentes, já em contexto de austeridade reforçada (com exceção única para a manifestação frente ao parlamento, no ano passado, que terminou com carga policial depois de horas de lançamento de objetos e pedras à polícia), o aumento da tensão é evidente. O nervosismo de quem vê apelos à violência onde apenas se procura sublinhar esse risco é precisamente um indício dessa mesma noção do risco.

 

Neste sentido, veja-se o aumento significativo da frequência com que as sessões da Assembleia da República são interrompidas por cidadãos que se encontram nas galerias, a transformação do espaço junto às escadarias do parlamento no palco por excelência e frequente da contestação e do culminar das manifestações de rejeição das medidas do Governo, as ocupações de ministérios na sequência da aprovação do OE para 2014 (numa ação muito pouco institucional face ao que tradicionalmente a CGTP opta por perfilhar como meio de luta) ou os episódios junto aos CTT de Cabo Ruivo, na passada sexta-feira.

 

Perante este cenário, o debate em torno do quadro jurídico que temos para enquadrar o protesto tem vindo a ser colocado em cima da mesa por alguns agentes políticos, que se interrogam sobre a necessidade de o alterar e de agravar as medidas de prevenção ou repressão dos protestos que, em seu entender, possam ser vistos como excessivos. Nesta linha, e ainda esta semana, voltou a estar em cima da mesa a questão do acesso às galerias do público da Assembleia da República, algo que, no rescaldo do episódio da "tomada" da escadaria pelos manifestantes das forças de segurança perante a passividade dos colegas que asseguravam a segurança da manifestação, pode encaminhar eventuais decisões pelo caminho errado, marcadas excessivamente pelo calor do momento. 

 

Parece-me, no entanto, que o quadro jurídico que hoje temos no que concerne a manifestações (e à presença de público no interior do parlamento, já agora) é equilibrado e capaz de dar respostas às necessidades de exteriorização do disenso e da opinião diversa (ou concordante) com as opções fundamentais dos Governos.

 

Apesar do caráter desatualizado de muitas das normas constantes do diploma que regula a matéria - um dos primeiros diplomas aprovados depois da Revolução de Abril (o Decreto-Lei n.º 406/74, de 29 de agosto) - a conformidade da sua letra com uma leitura plena da Constituição tem sido assegurada através de uma interpretação conforme dos aplicadores adminsitrativos e jurisdicionais ao longo das últimas décadas. Dificilmente os episódios descritos depõem no sentido de uma revisão a quente, que esqueça o sólido enquadramento doutrinal e jurisprudencial (solidificado com intervenções orientadoras e claras do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos). E se é certo que algumas zonas de incerteza vão aparecendo e que se prendem com evoluções inovadoras na forma de mobilizar os cidadãos ou com alterações de modelo tradicional das manifestaçõs (as mobilizações via rede sociais, ou a recente proposta da CGTP de atravessar a ponte 25 de abril), estão longe de justificar uma revisão global, num momento em que o debate dificilmente se faria de forma serena e ponderada. É, pois, importante não enveredar por alterações estruturantes à lei num momento em que podem ser lidas como condicionamento restritivo dos direitos em causa, pondo em causa o tal consenso pacífico de vários anos da sua aplicação. 

 

Por seu turno, em sede de presença nas galerias de público (o assunto que é mais provável que venha a ser discutido em breve), o acesso é feito de forma livre pelos cidadãos que se apresentem e identifiquem junto dos serviços da Assembleia, sendo informados de que não podem interferir nos trabalhos. A sanção para o incumprimento deste dever encontra-se prevista há anos no Código Penal, cujo artigo 334.º (peerturbação do funcionamento de órgão constitucional) determina que quem, com tumultos, desordens ou vozearias, perturbar ilegitimamente o funcionamento de órgão de soberania é punido com pena de prisão até 3 anosApesar desta clareza, a opção dos órgãos responsáveis pela gestão da vida parlamentar (e de outras entidades com competência para agir) há vários anos que tem sido a de não desencadear procedimentos criminais contra quem interrompe o plenário com protestos.


Este tem sido um exercício de bom senso, sensível ao que muitas vezes impele os cidadãos a protestar, e que apesar de poder reduzir a função preventiva da norma, tem permitido gerir um contexto de agravamento do desespero de muitas pessoas que sentem a necessidade de exigir ali, quando tudo falha, quando ninguém ouve, o direito a uma vida decente, a uma vida digna, a não ser tratado como um número numa folha excel de uma qualquer figura de segunda linha da Troika.

 

Significa isto que, perante esta praxe, não há espaço para reflexão e que o Parlamento não deve poder assegurar a compatibilização das reuniões com a presença fundamental de cidadãos nas galerias? Parece-me que, pelo menos, a ponderação da simples exclusão futura, por um período de tempo razoável, de quem não respeitou as regras de acesso às galerias se afigura mais do que suficiente e adequada para dar um sinal do equilíbrio que tem de se manter entre o direito de acesso ao parlamento, a liberdade de expressão e a necessidade de as reuniões do órgão de soberania decorrerem de forma não tumultuosa. 

 

Como poderemos discutir, num regresso prometido ao tema para breve, a opção em curso em Espanha é precisamente a inversa e tem todos os ingredientes para correr mal e revelar-se contraproducente. 

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publicado às 15:33





Filibuster, subs.

1. Utilização de tácticas de obstrução, tais como o uso prolongado da palavra, por membros de uma assembleia legislativa de forma a impedir a adopção de medidas ou a forçar uma decisão, através de meios que não violam tecnicamente os procedimentos devidos;

Filibuster, noun
1. The use of obstructive tactics, such as prolonged speaking, by a member of a legislative assembly to prevent the adoption of measure or to force a decision, in a way that does not technically contravene the required procedures;

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